Fonte: Blog Filosofia Cinza
Feche os olhos para olhar
Quando eles apareceram para mim: Juliana Adur, Peter Abudi e Yiuki Doi, tinham lido o Diálogo/Dança (SENAC, 2012) que escrevi por anos trocando cartas sobre dança com Thereza Rocha. Havia o “Feche os olhos para olhar” da Descompanhia de Dança dirigida pela Cintia Napoli da qual eles fazem parte. Fui assistir.
Na sala do Centro Cultural São Paulo tudo havia desaparecido no escuro ao redor. Também eu. Entrei logo que a porta fora fechada e os bailarinos começavam o rito. Entrei com meu corpo, por que é com o corpo que a gente anda, vem e vai, mas logo vi que algo do meu corpo continuou lá fora como deve ficar quando respeitosamente nos dirigimos ao momento da dança alheia. O escuro ao redor fazia saber que os olhos estavam já fechados, mesmo que os bailarinos, mais adiante, nos pedissem para fechá-los. Cada movimento na direção do assento onde eu devia ficar quieta não se devia notar. Tentei desaparecer, fui feliz.
Quando o corpo da gente some é que entendemos alguma coisa sobre ele. Quando o corpo some, é que cada movimento foi medido. Ao contrário, quando se dança, o corpo não some, fica todo presente porque a medida desaparece dando lugar à linguagem. Nós que assistimos, permanecemos medidos fora da linguagem, abandonados ao espaço no qual não sabemos viver sem regras. Cuidando para não sermos vistos, não olhamos. Olhar seria de arrepiar, e nos faria acordar. Quando, ao ver um espetáculo de dança, buscamos o estado de desaparição, o fazemos como quem se esconde de um perseguidor que só pode se esconder na atenção total ao que se vê enquanto se nos vemos a nós mesmos.
É então que a dança mostra a sua mágica. O corpo sumido diante do corpo que dança descobre a presença total. A presença total surge no silêncio daquele que tenta desaparecer no encontro com a presença do corpo bailarino. O corpo adensa quando precisa se fazer mínimo. Mas apenas se adensa porque os bailarinos performatizam sobre o corpo desaparecido do vidente o lugar de um outro corpo. Aquele que chegando dentro da sala de dança, lembra de um corpo que ficou lá fora.
O começo de um espetáculo de dança (será um “espetáculo” de dança?) para quem vai assistir é sempre o próprio corpo que, parado, parece a antítese da dança. Mas quem diz que não se dança parado não sabe o que é dança. Na verdade, não é possível saber o que é dança, porque a dança só se experimenta como prazer ou sofrimento no corpo. Como poesia: silêncio e som.
Com que corpo eu vou à dança que você me convidou?
Em “Feche os olhos para olhar” descobrimos que olhar é dançar. Descobrimos, porque os bailarinos fecham nossos olhos e nos ajudam a olhar.
Fechando os olhos para olhar, começamos a olhar no tempo do olhodançar.
A dança é o corpo existindo quando esse corpo inteiro que respira, fala, anda, olha, percebe que vive e que está em movimento parado: danço. A consciência é uma palavra gasta, mas ela tem sentido quando pensamos que se trata de cair no corpo, como quem cai no sonho. A dança opera uma revolução contra o meu estado de ser do mundo. Se seu corpo lhe foi roubado pela publicidade ou pelo trabalho, pela injustiça ou pela dor, a dança é um resgate. Se os inimigos do corpo, os seus detratores e caçadores, estão sempre por perto, a dança os afasta. O estado de dança é um estado de corpo devolvido a si mesmo, por quem se move dançando, por quem, olhando, percebe que seus olhos são todo um estado de corpo.
No “Feche os olhos para olhar” é o que aprendemos a ver o invisível que somos, o invisível onde estamos. Ali, vemos que ver não é bem assim. A dança não é ali o que “ensina” a ver, embora os bailarinos brinquem levando-nos a um outro lugar. Aonde nos levam é ao lugar do olhodançantedo qual fomos roubados. A dança é o que estamos olhando-juntos, enquanto, dançamos-juntos, mesmo quando sentados, mesmo quando parece que estamos apenas assistindo. Lá fora ficou o corpo aviltado por séculos de repressão, ali dentro ele está vivo.
O olhar nos leva a dançar e nos levando a olhar nos devolve ao estarsendo da vida. O espetáculo “Feche os olhos para olhar” é todo feito de convites a saberdançar. Ele é feito daquele “dansçaber” que começa com um estar-não-estando, aquele mesmo que experimentamos pelo avesso quando chegando na sala de dança queremos sumir com nosso corpestorvo. O “dansçaber” da Descompanhia nos retirou desse corpo, nos levando a olhar outro corpo, outro mundo. E nos pôs nele novamente por meio de uma devolução à vida. O corpo foi devolvido ao corpo no exercício do escuro que faz ver.
“Feche os olhos para olhar” nos convida por meio da narrativa encenada, um traço de teatro-dança que atravessa o cenário do tempo dançado pelos três bailarinos. A narrativa é só um traço, não um resumo de um sentido, não um resumo de coisa alguma. O dançado está ali, somente dançante brincando conosco no dansçaber do corpo que fala, anda, pula, faz coisas de todo tipo. Como quando se apoiam nas coisas conhecidas e comuns: a chaleira e a xícara de chá, as roupas (a saia rosa), ha via no espetáculo uma gelatina. As legendas:
- Abraçar,
- Dançar sem se mexer
- Espirais
- Falar o que se pensa
- Mover no nível baixo
- Tocar alternado.
Vão dando o caminho do rito. Tudo é acontecimento.
Os bailarinos falam. Em alguns momentos do espetáculo a bailarina enuncia o “começo” fazendo do começo sempre uma potencialidade . A voz é corpo que dança. A voz que nos convida, nos ensina, nos deixa parados. O papel da voz nos acorda para outros verbos: ouvirdançar é um deles. No tempo em que olhodançar é nossa prática descoberta, ouçodançar torna-se uma novidade efêmera e eterna. Mas o que isso quer dizer: ora, cada um que pense, que descubra o que isso pode querer dizer para si mesmo…
Quem quiser saber mais:
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